Celebrar os 50 anos do Encontro de Santarém

 

Bispos da Amazônia Brasileira reunidos em Santarém em 1972

Dos dias 24 a 30 de maio, o IV Encontro Pastoral da Amazônia (1972), em Santarém-PA, completará 50 anos. A ocasião será celebrada no IV Encontro da Igreja Católica na Amazônia Legal, a ser realizado dos dias 06 a 09 de junho, também em Santarém. O contexto celebrativo une este evento à comemoração dos 60 anos de abertura do Concílio Vaticano II (1962), dos 70 anos da CNBB (1952) e dos 15 anos da Conferência de Aparecida (2007), todas expressões da colegialidade episcopal e da sinodalidade.

Mas por que o Encontro de Santarém (1972) foi assim tão importante que mereça tal celebração?

Este encontro foi um marco na história da Igreja nesta bioregião, pois à luz do Concílio Vaticano II (1962-1965) e da Conferência de Medellín (1968), definiu “Linhas Prioritárias da Pastoral na Amazônia”. De forma assertiva podemos dizer que se Medellín marcou a recepção do Vaticano II na Amárica-Latina, e foi isso mesmo, o Encontro de Santarém marcou a recepção conciliar na Igreja da Amazônia.

Neste encontro, estavam presentes os arcebispos e bispos prelados de toda a Amazônia legal, que discerniram conjuntamente diretrizes comuns para a ação pastoral da Igreja:

Atendendo a essa realidade amazônica, com a nova consciência e a atitude da Igreja universal, a partir do Vaticano II, e em particular da Igreja latino-americana, a partir de Medellín, e recolhendo a experiência e os anseios das bases... A Igreja da Amazônia opta por quatro prioridades e por quatro séries de serviços pastorais, à luz destas duas diretrizes básicas: Encarnação na realidade e Evangelização libertadora (Documento de Santarém [DStrm], n. 3).

O “espírito” de Santarém: encarnação na realidade e evangelização libertadora

O que os bispos em 1972 chamaram de “diretrizes básicas”, podemos interpretar como sendo o “espírito” do Encontro e do Documento de Santarém. Segundo o Papa Francisco, “quando se diz que uma realidade tem ‘espírito’, indica-se habitualmente uma moção interior que impele, motiva, encoraja e dá sentido à ação pessoal e comunitária” (Evangelii Gaudium, n. 261). De fato, todas as prioridades e séries de serviços assumidas no Documento estão embebidas do espírito da “encarnação na realidade” e da “evangelização libertadora” e este espírito permaneceu vivo na trajetória da Igreja nesta região, encontrando forte eco nas conclusões do Sínodo para a Amazônia (2019).

A encarnação na realidade – afirmavam os bispos em Santarém – “estimula o renovado propósito de superar todo paternalismo, todo etnocentrismo..., todo modelo importado, pré-fabricado ou artificial de vida, fomentando uma decidida criatividade cultural” (DStrm, n. 4b). Sobre isso, o Documento Final do Sínodo (2019) contribui dizendo: “Rejeitamos uma evangelização de estilo colonialista... A evangelização que hoje propomos para a Amazônia é o anúncio inculturado que gera processos de interculturalidade, que promovem a vida da Igreja com identidade e rosto amazônico.” (n. 55). E o Papa Francisco, na Querida Amazônia (2020), completa: “Sonho com comunidades cristãs capazes de se devotar e de se encarnar na Amazônia, a tal ponto que deem à Igreja rostos novos com traços amazônicos” (n. 7).

Por evangelização libertadora, os bispos em Santarém entendiam uma “evangelização sem dicotomias, isto é, abrangendo harmonicamente o homem todo e todos os homens, o indivíduo e a sociedade” (DStrm, n. 5a). A este respeito, o Documento Final do Sínodo afirma que “a Igreja promove a salvação integral da pessoa humana” (n. 48) e a Querida Amazônia insiste que “a autêntica opção pelos mais pobres e abandonados, ao mesmo tempo que nos impele a libertá-los da miséria material e defender os seus direitos, implica propor-lhes a amizade com o Senhor que os promove e dignifica” (n. 63).

O Sínodo para a Amazônia não foi, portanto, um ponto de partida, mas sim um ponto de chegada e impulsionador de um processo de inculturação e sinodalidade que emerge em meados do século passado e encontra em Santarém (1972) claros elementos identitários.

O contexto de Santarém 50 anos depois

As quatro prioridades assumidas no Encontro de Santarém (1972) foram: Formação de Agentes de Pastoral – incluindo os presbíteros –, Comunidades Cristãs de Base, a Pastoral Indígena e as Estradas e Outras Frentes Pioneiras. Pouco tempo depois, em Manaus (1974), foi acrescentada a prioridade da Juventude. Celebrar estas Linhas Prioritárias, no entanto, não significa reduzir o olhar ao que um dia foi assumido, mas exige um duplo movimento: fazer memória para seguir em frente, em outras palavras, recordar para atualizar.

Hoje o contexto socioambiental e eclesial da Amazônia não é o mesmo que o dos inícios dos anos 1970. E se queremos ser fieis ao espírito de Santarém precisamos considerar esta nova conjuntura. Em 1972 o Brasil vivia os anos da ditadura militar com seus diversos projetos de “integração” e “desenvolvimento” para a região amazônica. A Igreja vivia a efervescência dos primeiros anos da recepção do Concílio Vaticano II e da Conferência de Medellín. A presença católica na Amazônia era capilar, embora o número de igrejas locais fosse bem menor, comparado aos nossos dias.

Hoje, vivenciamos o advento da cultura digital, globalizada e ao mesmo tempo fragmentada, geradora de uma revolução antropológica que traz consequências também para a experiência religiosa[1]. A crise climática já é a maior ameaça à espécie humana[2] e, neste cenário, a Amazônia ocupa um lugar central. No Brasil assistimos, ainda atordoados, ao esmorecer da pandemia da covid-19 com as diversas crises estruturais e conjunturais de uma sociedade cada vez mais urbana e desigual. A Igreja, segundo diversos especialistas, vive com o pontificado de Francisco, uma nova fase de recepção do Vaticano II, onde somos chamados a ser cada vez mais Igreja Povo de Deus sinodal e em saída missionária rumo às periferias. O Sínodo para a Amazônia, convocado pelo Papa Francisco, definiu objetivos claros de conversão eclesial (Documento Final) e horizontes límpidos para onde precisamos rumar (Exortação Querida Amazônia).

Este processo sinodal (2019) é recente e suas definições estão apenas tomando as formas iniciais. Para a Igreja da Amazônia hoje o desafio não será, portanto, como foi em Santarém (1972), definir novas “Linhas Prioritárias” da ação evangelizadora – tarefa esta que já foi realizada pelo Sínodo em seu abrangente caminho de preparação e realização – mas será, sobretudo, como aplicar estas propostas de forma sinodal, concreta e gradativa.

Desafios pastorais do Encontro de Santarém 2022

No espírito de Santarém (1972) e do Sínodo da Amazônia (2019), a Igreja é chamada a assumir novos caminhos pastorais e institucionais, ao mesmo tempo que é impelida pelo processo sinodal 2021-2023 a realizar este trabalho de forma conjunta e participativa. Não basta aprovar um belo documento que depois não será vivenciado nas igrejas locais. É preciso reaprender com o Encontro de Santarém (1972) aquele princípio sinodal: o que é assumido por todos se torna vinculativo para todos. Só assim podemos entender que Santarém (1972), como também o Sínodo da Amazônia e o Sínodo que virá em 2023, não são meros eventos, mas sim paradigmas de vivência eclesial em comunhão e participação, em vista da missão. Tendo isto em conta, o Encontro de Santarém (2022) precisará se fazer alguns questionamentos, dentre eles:

·         Como desenvolver processos pastorais de base que compreendam o arco social, cultural, ecológico e eclesial em torno do eixo fundamental que é o Evangelho vivo?

·         Como articular e envolver as definições do Sínodo de 2019 com as Diretrizes da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, que já iniciam sua fase de atualização?

·         Qual o papel da CEAMA e o da REPAM nesse processo e como estas organizações podem descer cada vez mais às bases da ação evangelizadora cotidiana?

Isto tudo, é claro, reconhecendo que os católicos, em muitos lugares da Amazônia, já não são a maioria e que perdemos consideravelmente a capilaridade que tínhamos na década de 1970. Sem cristãos católicos, como promover evangelização da Igreja sinodal em saída missionária?

O Encontro de Santarém (2022), que celebra e faz memória, se insere, portanto numa caminhada que lhe precede e é chamado a ser um marco de recepção do Sínodo da Amazônia e de preparação para o Sínodo de 2023; um elo de continuidade da renovação conciliar e do mandato missionário de Jesus. Que o Espírito Santo faça crescer em nossas comunidades eclesiais amazônicas a viva consciência de que, 50 anos depois do encontro de 1972, Cristo continua apontando para a Amazônia (Santarém-1972), pois aí se encarnou e armou sua tenda (Manaus-1997), para que os seus que vivem neste lugar teológico (Querida Amazônia, 2020) possam ser Igreja Povo de Deus em sinodalidade.

Notas

[1] Diretório para a Catequese (2020), n. 46.

[2] Sexto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas.



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