A Espiritualidade do Tempo Comum


Primeiros Passos - Vincent Van Gogh

Retomamos nestes dias a celebração do Ciclo Comum na Liturgia. São 33 ou 34 semanas – que preenchem boa parte do Ano Litúrgico – articuladas em dois momentos: o primeiro e mais breve, entre os ciclos do Natal e Páscoa; o segundo após a Solenidade de Pentecostes até o Advento. Mas o que este Tempo comunica à nossa vida cristã? Pode algo comum acrescentar à espiritualidade?

Tempo de libertação

O Tempo Comum é tempo de libertar o tempo. O Cardeal português, José Tolentino Mendonça, afirma que em nossos dias “tudo transita num galope ruidoso, veemente e efêmero. Na verdade, a velocidade com que vivemos impede-nos de viver”. Permanece aí questão: “Como viver no tempo sem ser tragado por sua rotina rápida e pesada em uma sociedade que não pode ‘perder tempo’ e que oferece produtos sempre renovados e sempre mais eficientes?”.

É preciso fazer deste tempo um tempo de libertação. Libertar o tempo, segundo o Cardeal, “é a atitude de descobrir o essencial, de ver o invisível e de saciar-se somente do necessário” [1]. O Tempo Comum é ocasião para se aperfeiçoar na arte de libertar o tempo para dar-lhe novo sentido.

O Comum como lugar de salvação

Temos grande dificuldade com o que é comum. A denominação deste período litúrgico causa incômodo. Quem quer ter um tempo comum? Em nossa sociedade do imediato, como vimos, até mesmo o tempo é algo angustiante, ainda mais o comum, ordinário, simples. O drama da ansiedade nos faz viver com medo do comum. Pulamos de evento em evento (até mesmo na comunidade eclesial); buscamos qualquer oportunidade que nos permita “quebrar a rotina”, ceder à inconstância. Segundo esta mentalidade o comum deve ser evitado, pois é vazio de sentido.

Todavia o fato é que o comum faz parte da vida e da vida cristã. Cabe a nós, neste tempo em que adentramos, não fugir, mas sim conhecer o seu sentido, o valor do que é ordinário, cotidiano e descobrir a sua riqueza espiritual.

Ao trilhar este “itinerário verde” (cor litúrgica do Tempo Comum), precisamos olhar para nossa própria rotina, para o próprio cotidiano, para as ações mais simples que fazem parte da agenda e do cuidado com a família, o trabalho, os amigos, a vida pública - olhar para o que mais ocupa nossas horas e nossos dias - e encontrar aí a presença do Espírito que tudo fecunda, encontrar o Deus que se fez “comum” pra nos encontrar. Assim, experimentaremos que a vida comum é lugar de salvação.

Uma Espiritualidade Integral

Quando falamos de espiritualidade, precisamos compreender que não se trata de uma única dimensão do ser humano, de um departamento íntimo e individual que precisa vez ou outra ser bem arejado. Espiritualidade é a vida como um todo da pessoa vivida no Espírito, ao modo do Deus-Trindade. Trata-se da vida no amor; vida feita dom que se faz relação. A Liturgia é a fonte e o cume desta espiritualidade [2], pois nos comunica o Espírito do Senhor.

Assim como Pedro, Tiago e João fizeram a experiência da Transfiguração na montanha, mas precisaram descer (cf. Mt 17,1-9), o Tempo Comum nos faz o convite de passar da espiritualidade da festa, à espiritualidade do cotidiano, que também encontra sua fonte na experiência litúrgica. Sobre isso, o Liturgista de Bose, Goffredo Boselli, afirma que “a pergunta decisiva, à qual é necessário dar o mais cedo possível uma resposta, não é antes de tudo como os fieis vivem a Liturgia, mas se eles vivem da Liturgia que celebram” [3].

É possível e, por isso, perigoso passar a vida celebrando bem a Liturgia sem viver da Liturgia celebrada. O Tempo Comum é, assim, um laboratório que procura assimilar as experiências pascais à vida real e cotidiana dos cristãos. “Viver da Liturgia que se celebra significa viver daquilo que a Liturgia faz viver: o perdão invocado, a Palavra de Deus escutada, a ação de graças elevada, a Eucaristia recebida como comunhão” (ibid). Quando nos abrimos à vivência segundo o Espírito que habita em nós, passamos da Liturgia do rito à Liturgia da vida.

Desta forma, o Tempo Comum nos leva a vivência de uma espiritualidade integral. Se no Ciclo do Natal celebramos o mistério do Cristo encarnado e na Páscoa o mistério de sua paixão, morte e ressurreição, no Tempo Comum celebramos o mesmo Cristo presente em nossa história pessoal, comunitária e social – no que é comum em nossa vida – e aí completando a sua Páscoa em nós e nos salvando.

Um caminho de salvação

Esta salvação acontece no caminho, não como mérito, mas como dom acolhido e vivenciado. No caminho ocorre a formação do povo de Deus; as quedas e também os reerguimentos; os encontros e desencontros. No caminho se aprende a desprender-se do próprio “eu” para viver em relação, em função do Outro e dos outros.

Neste caminho, não estamos sozinhos. Como nos diz o Papa Francisco: “somos convidados a reconhecer-nos ‘com tamanha nuvem de testemunhas’, que incitam a não deter-nos no caminho, que nos estimulam a correr para a meta” [4]. É a multidão dos santos e santas que nos acompanham, tornando credível a proposta do Reino de Deus. Por isso, o Tempo Comum carrega grandes solenidades dos santos, além das festas e memórias, pois a santidade no cotidiano é possível.

O centro do caminho do Tempo Comum é a celebração Dominical. No Domingo, dia do Senhor e da comunidade, a Igreja se encontra para fazer oferta de sua vida na vida do Filho e para renovar a comunhão e a pertença ao seu Corpo. É na celebração dominical que os cristãos encontram o sentido do caminho, da espiritualidade e da vida comum. De Domingo em Domingo, deixando-se configurar a Cristo pela Palavra e pela Eucaristia.

Redescobrir a extraordinariedade do comum

Tanto o tempo quanto o comum em nossas vidas, anseiam por um novo espírito, pelo Espírito de Deus que tudo fecunda e a todos renova. Precisamos redescobrir o Tempo Comum, com todas as suas potencialidades, riquezas e espiritualidade. Na Liturgia, na Catequese, nas pequenas comunidades e na vida pessoal de cada cristão, o tempo comum é tempo de Deus, e por ser de Deus é sempre convite a viver o ordinário de forma extraordinária.


Para assimilar na vida:

  • Fazer um exercício de contemplação pessoal e se perguntar: do que precisa ser libertado o meu tempo?
  • Vivo aberto/a à acolhida do Deus "comum" em meus afazeres cotidianos?
  • Experimentar este caminho do Tempo Comum como laboratório de configuração à Cristo, na vida pessoal e familiar, na comunidade eclesial e nas relações sociais.


Notas:

[1] MENDONÇA, José Tolentino. Libertar o Tempo: para uma arte espiritual do presente. Paulinas. 2019.

[2] VATICANO II, Concílio Ecumênico. Constituição Pastoral Sacrosanstum Concilium. N. 10.

[3] BOSELLI, Goffredo. O Sentido Espiritual da Liturgia. Edições CNBB.

[4] FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Gaudete et Exultate. N. 3.


Comentários

  1. Extraordinário!!! A salvação acontece no caminho, o trivial, comum e cotidiano. Façamos deste itinerário o lugar de vivência do tempo e do comum para a busca da santidade pela vivência e testemunho da Palavra.

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