Redescobrir a Espiritualidade do Cotidiano

A Criação de Adão - Michelangelo - Capela Sistina - Arquivo pessoal

Como alimentar a fé sem a possibilidade de celebrar os sacramentos e se reunir em comunidade? Esta é a pergunta feita por pastores e leigos neste período – já duradouro – de isolamento social. Se a fé é relação com o Pai, por meio do Filho, no Espírito Santo, é preciso voltar a Jesus de Nazaré, o Cristo encarnado, e aprender dele como viver a espiritualidade do cotidiano.

Sobre isso, muito tem a nos ensinar a estimada catequista do Brasil e minha querida amiga, Therezinha Cruz, que em seu livro “Este mundo de Deus: educar para a espiritualidade do cotidiano” nos fala de maneira próxima e clara sobre esta dimensão – hoje tão fundamental – da vida cristã. Neste texto farei um resgate destas sábias palavras, colocando-as em relação com a mística de Jesus de Nazaré e alguns documentos do magistério eclesial.

Alguém pode dizer que as únicas formas de cultivar a fé e a espiritualidade católicas nestes dias são: assistir a Missa na televisão, por streaming ou ver o padre passar na rua para dar uma bênção. Mas esta é uma visão bastante reduzida da vida batismal. De fato, como diz o Papa Francisco, “Deus dota a totalidade dos fieis com um instinto da fé – o sensus fidei – que os ajuda a discernir o que vem realmente de Deus” (Evangelii Gaudium, n. 119). Este instinto da fé não pode ser aguçado apenas no que se refere ao que entendemos por “religioso”, mas sim no todo da existência e do cotidiano. Se não soubermos por onde começar, olhemos para Jesus e deixemos que Ele nos eduque.

Certa vez, Jesus se dirigiu a seus discípulos e perguntou o que as pessoas diziam sobre ele: “Quem dizem as pessoas ser o Filho do Homem?”. Os discípulos responderam: “Alguns dizem que és João Batista; outros, Elias; outros ainda, Jeremias ou algum dos profetas”. Então Jesus lhes fez outra pergunta: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (cf. Mt 16,13-15). Para conhecer Jesus é preciso deixar-se surpreender por Ele, acolher a sua novidade, atitude difícil até mesmo para os seus discípulos, que também possuíam ideias pré-fixadas de Messias.

O biblista Frei Carlos Mesters nos convida a voltar ao Evangelho – atitude fundamental para quem quer crescer na fé – e encontrar Jesus ainda antes de sua vida pública; a mergulhar no silêncio de Nazaré. É o mistério do Cristo escondido que tanto encantou o Beato Charles de Foucauld. Se dos seus trinta e três anos históricos, trinta foram vividos no cotidiano anônimo da periferia, do trabalho e da família, é preciso redescobrir as potencialidades que este tempo carrega. Assim, podemos perceber que para Jesus o mais importante, o mais decisivo de uma vida humana é saber viver este dia-a-dia, esta vida aparentemente sem valor, sem nada de extraordinário; a vida comum da grande maioria da humanidade,* – sobretudo neste tempo – pois esta vida é potencialmente lugar de salvação.

Muitos vivem este período como um tempo estéril, vazio, – também no que diz respeito à fé – apenas na espera do amanhã, do fim do isolamento pra poder “voltar a viver”. Porém, nós somos chamados a entrar na “escola de Jesus” e aprender dele a viver a espiritualidade do cotidiano que formou a fé do Filho de Deus e pode formar a nossa, que somos seus irmãos.

Antes de tudo, é preciso redescobrir o sentido da espiritualidade. Therezinha Cruz, de uma forma bem didática, escreve que não apenas objetos como vela e pão podem estar relacionados à espiritualidade, mas também a lâmpada elétrica e o biscoito. Tudo depende de como olhamos para estas realidades, pois a espiritualidade é um modo de ler a vida, de conceber o sentido da existência, “do que” se faz e de “como” se faz. Desta forma, a espiritualidade nos leva à transcendência da vida e do cotidiano e nos faz perceber o “espírito” do que acontece a nossa volta e o Espírito presente, mesmo que estejamos confinados ao espaço da casa.

Therezinha lembra que também na época de Jesus, alguns tinham dificuldade de vê-lo como presença de Deus. Para estes, Jesus não passava do filho do carpinteiro, de um homem vindo de Nazaré. É o risco sempre presente de “passarmos pelas coisas e pelas pessoas sem as habitar” (José Tolentino Mendonça), sem contemplar nelas a transcendência, aquilo que vai além do que parece ser. “É preciso olhar a vida com o olhar que busca sinais de valores do Reino em todas as atividades” (Therezinha Cruz). Não há como perceber a presença de Deus no cotidiano se não o buscamos em tudo o que fazemos e vivemos; é como aqueles que “olhando, não enxergam e ouvindo não escutam, nem entendem” (Mt 13,13).

Sobre esse cotidiano cheio da presença de Deus, escrevem de forma tão bela os bispos do Brasil, se referindo aos cristãos leigos e leigas – mas hoje podendo ser alargado a todos os batizados – “que vivem sua fé no cotidiano, nos trabalhos de cada dia, nas tarefas mais humildes, no voluntariado, cuja vida está escondida em Deus”. Estes e estas “são o perfume de Cristo, o fermento do Reino, a glória do Evangelho. Eles se santificam nos altares do seu trabalho: a vassoura, o martelo, o volante, o bisturi, a enxada, o fogão, o computador, o trator. Constroem oficinas de trabalho e oficinas de oração” (Doc. 105 da CNBB, n. 35). É a espiritualidade de Santa Tereza e suas panelas, de São Francisco e o irmão sol, de Jesus e a figueira.

Para vivenciar esta mística precisamos rejeitar a lógica dualista que opõe fé e vida; sagrado e profano; Igreja e mundo (cf. Doc. 105 da CNBB n. 133) e nos perguntar com sinceridade, como fez Therezinha Cruz: “O que será sinal de uma espiritualidade maior com Deus: rejeitar todas as situações ‘mundanas’ porque lá Ele não está? Ou saber encontra-lo em todo lugar porque nossos olhos aprenderam a ver o amado invisível e a valorizar tudo o que Ele criou e nos deu poder de criar?”.

Neste tempo de pandemia, somos convidados a uma simples, mas radical re-iniciação na fé que nos faça passar do Deus “de lá” para o Deus “aqui”; da espiritualidade da sacristia e do salão paroquial para a da cozinha e do riso de criança; da liturgia do rito para a liturgia da vida. Nesta, nosso corpo é a oferenda; os afazeres, oblação; a cama, o altar. Assim poderemos nos alimentar, como comunidade, do mesmo Cristo, vivo e operante, que está presente conosco e em nós por sua eterna encarnação.


* MESTERS, Frei Carlos. Com Jesus na contramão. Paulinas. São Paulo-SP. 2016.

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