Pensando a Ação Evangelizadora no Pós-Pandemia


Imagem: Pixabay

O Papa Francisco, na benção Urbi et Orbi especial do dia 27 de março na Praça São Pedro, escolheu o texto evangélico de Mc 4,35-41 para nos dizer que vivemos um tempo de travessia tempestuosa. Esta travessia não terminou; continuamos a rumar em direção à outra margem, totalmente desconhecida. Ainda assim, em várias de suas falas nestes meses, o Papa nos convida já a pensar nesta outra margem, no pós-pandemia. Vivemos um tempo-ponte, não um tempo-pausa. O futuro está presente à medida que se percebe que sua construção se dá no hoje [1].

É preciso, portanto – como nos convida o Cardeal Tolentino Mendonça – ouvir este futuro já agora; abrir-se às suas perguntas e pró-vocações, pois na vivência deste tempo-kronos (que nos devora), podemos experimentar também um tempo-kairós, que nos chama à conversão integral e nos dá nova vida [2]. A pandemia não traz muitas novidades, mas faz emergir o que dantes não se via (ou não se queria ver). Todas as chagas humanas, sociais, ambientais e eclesiais estão agora expostas, pois “nada há de oculto que não venha a ser revelado” (cf. Mt 10,26).

Por este motivo, torna-se possível elaborar, ainda na travessia, perspectivas sobre “a outra margem”. Num permanente exercício de discernimento, à luz dos livros da vida e da Sagrada Escritura, e desarmado de toda pretensão de totalidade, apresento uma contribuição para este “ouvir o futuro” que já se avizinha e que nos exige prontidão. Que sirva de motivação para que as igrejas locais, de forma sinodal, possam identificar desafios, sinais dos tempos e daí pensar a ação evangelizadora no pós-pandemia.

I. DESAFIOS

“Fugir dos desafios da vida jamais é uma solução” (Papa Francisco, República Centro-Africana)

Na dimensão Ético-Humana

  1. Indiferença. O maior desafio de ordem ética que se nos apresenta neste tempo é o avanço (ou maior vislumbre) da cultura da indiferença. A ausência da consciência do “eu” em relação com o “outro” – como responsável pelo meu irmão – levou ao agravo da pandemia: por parte de patrões, de funcionários, de vizinhos, de gestores públicos, etc. “O oposto mais cotidiano ao amor de Deus, à compaixão de Deus, é a indiferença” (Papa Francisco). Quando o nosso povo vive enxertado na mentalidade de que se eu estou bem, então está tudo bem e perde a capacidade de olhar alguns metros adiante, este é já um urgente desafio;
  2. Patologias mentais. Com a experiência do isolamento e distanciamento obrigatórios, do medo intenso e do luto indigno do coronavírus, as autoridades de saúde, a ONU e instituições civis alertam para o crescimento de patologias mentais, como estresse, ansiedade, depressão e outras. Esta realidade chegará (e já chegou) às nossas comunidades eclesiais de forma preocupante, o que leva a nos perguntar: sabemos escutar?

Na dimensão Socioambiental

  1. Colapso da Casa Comum. Como profetizado pela Encíclica Laudato Si’, mais do que um tempo de crise, nossa geração testemunha um colapso originado em uma forma adoecida de habitar a casa comum. Nesta pandemia a história humana e a história do planeta mostram que estão intrinsecamente unidas e destinas ao mesmo fim. Não dá para falar de uma sem a outra, nem cuidar de uma sem cuidar da outra;
  2. Pandemia econômica. Além da pandemia do novo coronavírus, se alastra também a pandemia da pobreza, da miséria, da fome e do desemprego. O Auxílio Emergencial revelou 46 milhões de brasileiros invisíveis aos olhos do governo, sobrevivendo em condições muitas vezes sub-humanas em nossas cidades. Estavam estes também invisíveis aos olhos da Igreja?
  3. Crise política. Enfrentamos a maior crise política da história da República Brasileira. As inclinações autoritárias, despóticas e ultraliberais do governo Bolsonaro – legitimadas por um falso discurso cristão – foram expostas de forma clara. A Igreja se defronta com a polarização política irracional que já não cabe na discussão democrática de direita-esquerda e ao mesmo tempo, com o desafio de ser instrumento do diálogo, da paz e da denúncia evangélica e profética neste cenário.

Na dimensão Religiosa-Pastoral

  1. O lugar da religião hoje. Diante do deslocamento da esperança coletiva para a ciência, é preciso encarar o já urgente questionamento – sobretudo entre as novas gerações – a respeito de qual o lugar da religião hoje;
  2. A liderança do Papa Francisco. Os cristãos católicos somos ainda mais desafiados – mesmo nas igrejas locais – por estar sob a guia de um dos líderes mundiais com maior clareza e maturidade diante desta crise que é o Papa Francisco. O suave peso da correspondência do seu modo integral de pensar o futuro, recai sobre o povo católico, este querendo ou não.
  3. Uma Igreja envelhecida. O atual cenário de impedimento da participação dos idosos nas celebrações dominicais, evidencia como é tímida e reduzida a presença de jovens e de casais novos em nossas comunidades, até mesmo nos ministérios e serviços;
  4. Quebra do vínculo comunitário. Teremos de lidar com certo “esfriamento” do preceito dominical, além de possível maior ruptura no vínculo comunitário eclesial;
  5. Cuidar do que temos. Cuidar das lideranças pastorais diocesanas e paroquiais que temos, buscando restaurar a comunhão que talvez não tenha sido alimentada neste tempo de pandemia é um urgente desafio. Também os mais próximos passam por dificuldades psicológicas, financeiras e espirituais nestes meses;
  6. As famílias feridas. Cuidar das famílias, especialmente daquelas que na travessia da pandemia foram profundamente chagadas. São muitos casais em crise, aumento dos divórcios e até violência doméstica. A Igreja aqui é desafiada a ser hospital de guerra, interessada em tratar feridas profundas, como pede o Papa Francisco;
  7. Liturgia e Vida. Cuidar da Liturgia e da vida, de forma que o zelo por uma não venha a ferir a outra. O grande desafio é retornar com as celebrações com presença do povo sem que a Liturgia deixe de expressar o mistério do encontro com Deus e sem que o povo ponha em risco a saúde sua e dos outros;
  8. A formação pastoral. Pensar os planos pastorais de formação de dioceses e paróquias a partir desta realidade que vivemos e dos diversos desafios identificados;
  9. Voltar ao essencial. Discernir o que realmente é essencial em nossa ação pastoral no mundo atual, com a coragem de se purificar dos adornos desnecessários.

II. SINAIS DOS TEMPOS

“Olhando para o futuro, vamos ler os sinais que a COVID-19 exibiu claramente” (Cardeal Michael Czerny – Prefácio do livro Vida Após a Pandemia do Papa Francisco).

Na dimensão Ético-Humana

  1. O reconhecimento da profunda necessidade que temos dos outros como remédio para a indiferença. “Verdadeiramente palavras como indiferença, egoísmo, divisão, esquecimento não são as que queremos ouvir neste tempo. Mais, queremos bani-las de todos os tempos!” (Papa Francisco - bênção Urbi et Orbi da Páscoa 2020);
  2. A presença do Reino de Deus escondido na humanidade resistente que insiste em servir, amar, dar a vida e o tempo pelos outros mesmo nestas circunstâncias de morte. Profissionais de saúde, jovens vizinhos solidários, empresários conscientes, manifestantes pacifistas pelo fim do preconceito racial e tantos outros são manifestação da face divina do autêntico Humano, sinal credível de que o Reino começa aqui;
  3. A oportunidade de reorientar o próprio viver, o próprio agir e o próprio se relacionar que este momento de confronto com a finitude nos propõe.

Na dimensão Socioambiental

  1. A confirmação da verdade da Laudato Si’ com todas as suas provocações e o reconhecimento da necessidade de uma conversão integral, para que a humanidade – a começar pelas comunidades cristãs – encontre outro modo de vida;
  2. A sociedade brasileira, diante da crise política, necessita de cidadãos e agentes públicos cientes do primado da pessoa humana e do bem comum, aspectos centrais da Doutrina Social da Igreja;
  3. A partir das limitações impostas pela ampla recessão econômica, surge a oportunidade de olhar para uma economia mais local e regional, investindo em alternativas para além do mercado, visando o bem viver e bem conviver. Sobre isso, muito tem a dizer a ArticulaçãoBrasileira pela Economia de Francisco (ABEF).

Na dimensão Religiosa-Pastoral

  1. A consciência de que estamos sempre nas mãos de Deus e de que nossos planejamentos e calendários não são totalizantes dos seus desígnios, que exigem abertura às suas surpresas e às surpresas da vida;
  2. A oportunidade de mostrar – pelo testemunho e pela voz profética – à sociedade, principalmente às novas gerações, o novo lugar que a religião possui no mundo de hoje;
  3. A pessoa do Papa Francisco, com sua clareza evangélica e liberdade de espírito, que muito ensina e motiva as lideranças eclesiais à santa parrésia e ousadia para agir na atualidade e construir um novo futuro;
  4. A saudade de muitos da comunidade eclesial e das celebrações, revelando uma necessidade que nem mesmo sabiam que era real;
  5. A oportunidade de rearticular a rede de comunicação nas dioceses e paróquias, e de entrar para permanecer nos diversos ambientes de comunicação digitais, somando-os à ação pastoral ordinária;
  6. A redescoberta da eclesialidade do lar – jeito antigo e novo de ser Igreja – e da centralidade da família para toda e qualquer ação pastoral;
  7. A apresentação da caridade e da solidariedade como constitutivas da ação pastoral fundamental;
  8. A oportunidade de repensar o que é de fato essencial no meio pastoral e de ousar na abertura de novos caminhos.

III. PROPOSTAS

“Depois do que já passamos este ano, não devemos ter medo de nos aventurarmos por novos caminhos e de propor soluções inovadoras” (Cardeal Michael Czerny – Prefácio do livro Vida Após a Pandemia do Papa Francisco).

Na dimensão Ético-Humana

  1. Capacitar, através de diretrizes bem elaboradas, pessoas de vida e fé maduras para realizar plantões de escuta nas comunidades e paróquias;
  2. Solicitar aos padres que deleguem funções, para que lhes sobre mais tempo para atender as pessoas que chegam e visitar as que não chegam;
  3. Inserir transversalmente nos diversos níveis da formação a práxis da cultura do encontro e do cuidado, como combate à cultura da indiferença, pois “entre vós não deve ser assim” (cf. Mt 20,26).

Na dimensão Socioambiental

  1. Promover a Pastoral Ambiental – com a concreta proposta de uma conversão integral – e, através dela, articular redes de produção, cooperação e comércio locais e regionais como alternativa econômica diante da crise;
  2. Zelar pela evangélica conscientização político-cidadã dos cristãos leigos e das pequenas comunidades eclesiais missionárias, através de mensagens, homilias, Escolas de Fé, Política e Cidadania e cursos populares de Doutrina Social da Igreja, que podem iniciar seus trabalhos de forma semipresencial;

Na dimensão Religiosa-Pastoral

  1. A consciência do lugar que a religião possui hoje deve se originar na forma integral e positiva com que ela vê, fala e se relaciona com a pessoa humana concreta;
  2. Conhecer e dar a conhecer melhor o pensamento do Papa Francisco sobre as realidades do mundo atual: Laudato Sí, Encontro sobre a Economia de Francisco, Pacto Global pela Educação, etc.
  3. Elaborar planejamentos pastorais de forma conjunta e sinodal, superando as fragmentações que ferem as relações eclesiais;
  4. Elaborar um programa de retorno gradativo das atividades pastorais – à distância, semipresencial e presencial - que acompanhe a regressão da pandemia e as orientações das autoridades de saúde;
  5. Aproveitar da saudade que muitos tiveram das celebrações e da comunidade para acolher bem, mostrar que são importantes e atrair suas famílias;
  6. Priorizar o trabalho com as famílias – sobretudo as feridas – e oferecer meios para o cultivo de uma espiritualidade doméstica e da graça da convivência;
  7. Assumir os ambientes digitais como constitutivos da ação pastoral ordinária, zelando pelo vínculo com a comunidade;
  8. Valorizar a formação à distância como meio eficaz e sério de trabalho e de comunhão;
  9. Assumir com coragem, daqui pra frente, uma opção preferencial pelos jovens e casais novos, zelando pela sadia renovação dos serviços pastorais.

IV. CONCLUSÃO

Olhando para o ideal evangélico, para o que nos pede o Sínodo Amazônico e para a realidade que enfrentamos,

Precisamos desaprender

  • A fragmentar a fé, privando-a de sua integralidade necessária;
  • A caminhar sozinhos, cada um na sua comunidade, pastoral, movimento ou paróquia sem a vivência da unidade;
  • Que apenas a igreja é lugar de fazer pastoral;
  • A propagandear a fé em nossas mídias digitais.

Precisamos aprender

  • Que a Laudato Si’ é urgência pastoral, humana, social e ecológica;
  • Que ser comunidade é mais do que fazer as coisas juntos, mas ser com os outros e para os outros;
  • A partilhar as tristezas e as angústias que a pandemia deixa nos corações dos homens e mulheres de hoje;
  • A parar, repensar, avaliar e discernir sobre o essencial em nossa ação evangelizadora;
  • A fazer como o Papa: primeirear, dar testemunho e ser ousados.

Precisamos reaprender

  • O caminho do Evangelho da proximidade e da compaixão;
  • A vivência da fé em família, a arte da convivência e a espiritualidade do cotidiano;
  • A arte da escuta que cura;
  • Que não podemos evangelizar desconsiderando o contexto social;
  • A sair em missão para anunciar, encontrar e cuidar;
  • A missão singular da religião no mundo.

 Que nos mova a alegria do Evangelho e a viva esperança do santo padre, o Papa Francisco:

“Espero que esse momento de perigo nos tire do piloto automático, sacuda nossas consciências adormecidas e permita uma conversão humanística e ecológica que termine com a idolatria do dinheiro e coloque a dignidade e a vida no centro. Nossa civilização, tão competitiva e individualista, com suas taxas frenéticas de produção e consumo, seus luxos excessivos e lucros desmedidos para poucos, precisa mudar, se repensar, se regenerar.” (Mensagem de Páscoa aos Movimentos Populares – 2020)

 

Notas:

[1] PAPA FRANCISCO. Vida após a Pandemia. Libreria Editrice Vaticana.

[2] TOLENTINO MENDONÇA. Tecendo Redes: Espiritualidade Cristã em Tempos de Isolamento Social. Diálogos online de Teologia Pastoral. FAJE.

Comentários

  1. O tempo de hoje, não basta se comover, mas é necessário se converter e se mover com compaixão para sair de si e ir ao encontro do outro. "Amar a Deus de todo coração e o próximo como a si mesmo". # eu me comptometo! Eu confio na graça do Senhor.

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