Pensando a Ação Evangelizadora no Pós-Pandemia
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O Papa Francisco, na benção Urbi et Orbi especial do dia 27 de março na Praça São Pedro, escolheu o texto evangélico de Mc 4,35-41 para nos dizer que vivemos um tempo de travessia tempestuosa. Esta travessia não terminou; continuamos a rumar em direção à outra margem, totalmente desconhecida. Ainda assim, em várias de suas falas nestes meses, o Papa nos convida já a pensar nesta outra margem, no pós-pandemia. Vivemos um tempo-ponte, não um tempo-pausa. O futuro está presente à medida que se percebe que sua construção se dá no hoje [1].
É preciso, portanto – como nos convida o Cardeal Tolentino Mendonça – ouvir este futuro já agora; abrir-se às suas perguntas e pró-vocações, pois na vivência deste tempo-kronos (que nos devora), podemos experimentar também um tempo-kairós, que nos chama à conversão integral e nos dá nova vida [2]. A pandemia não traz muitas novidades, mas faz emergir o que dantes não se via (ou não se queria ver). Todas as chagas humanas, sociais, ambientais e eclesiais estão agora expostas, pois “nada há de oculto que não venha a ser revelado” (cf. Mt 10,26).
Por este motivo, torna-se possível elaborar, ainda na travessia, perspectivas sobre “a outra margem”. Num permanente exercício de discernimento, à luz dos livros da vida e da Sagrada Escritura, e desarmado de toda pretensão de totalidade, apresento uma contribuição para este “ouvir o futuro” que já se avizinha e que nos exige prontidão. Que sirva de motivação para que as igrejas locais, de forma sinodal, possam identificar desafios, sinais dos tempos e daí pensar a ação evangelizadora no pós-pandemia.
I. DESAFIOS
“Fugir dos desafios da vida jamais é uma solução” (Papa Francisco, República Centro-Africana)
Na dimensão Ético-Humana
- Indiferença. O maior desafio de ordem ética que se nos apresenta neste tempo é o avanço (ou maior vislumbre) da cultura da indiferença. A ausência da consciência do “eu” em relação com o “outro” – como responsável pelo meu irmão – levou ao agravo da pandemia: por parte de patrões, de funcionários, de vizinhos, de gestores públicos, etc. “O oposto mais cotidiano ao amor de Deus, à compaixão de Deus, é a indiferença” (Papa Francisco). Quando o nosso povo vive enxertado na mentalidade de que se eu estou bem, então está tudo bem e perde a capacidade de olhar alguns metros adiante, este é já um urgente desafio;
- Patologias mentais. Com a experiência do isolamento e distanciamento obrigatórios, do medo intenso e do luto indigno do coronavírus, as autoridades de saúde, a ONU e instituições civis alertam para o crescimento de patologias mentais, como estresse, ansiedade, depressão e outras. Esta realidade chegará (e já chegou) às nossas comunidades eclesiais de forma preocupante, o que leva a nos perguntar: sabemos escutar?
Na dimensão Socioambiental
- Colapso da Casa Comum. Como profetizado pela Encíclica Laudato Si’, mais do que um tempo de crise, nossa geração testemunha um colapso originado em uma forma adoecida de habitar a casa comum. Nesta pandemia a história humana e a história do planeta mostram que estão intrinsecamente unidas e destinas ao mesmo fim. Não dá para falar de uma sem a outra, nem cuidar de uma sem cuidar da outra;
- Pandemia econômica. Além da pandemia do novo coronavírus, se alastra também a pandemia da pobreza, da miséria, da fome e do desemprego. O Auxílio Emergencial revelou 46 milhões de brasileiros invisíveis aos olhos do governo, sobrevivendo em condições muitas vezes sub-humanas em nossas cidades. Estavam estes também invisíveis aos olhos da Igreja?
- Crise política. Enfrentamos a maior crise política da história da República Brasileira. As inclinações autoritárias, despóticas e ultraliberais do governo Bolsonaro – legitimadas por um falso discurso cristão – foram expostas de forma clara. A Igreja se defronta com a polarização política irracional que já não cabe na discussão democrática de direita-esquerda e ao mesmo tempo, com o desafio de ser instrumento do diálogo, da paz e da denúncia evangélica e profética neste cenário.
Na dimensão Religiosa-Pastoral
- O lugar da religião hoje. Diante do deslocamento da esperança coletiva para a ciência, é preciso encarar o já urgente questionamento – sobretudo entre as novas gerações – a respeito de qual o lugar da religião hoje;
- A liderança do Papa Francisco. Os cristãos católicos somos ainda mais desafiados – mesmo nas igrejas locais – por estar sob a guia de um dos líderes mundiais com maior clareza e maturidade diante desta crise que é o Papa Francisco. O suave peso da correspondência do seu modo integral de pensar o futuro, recai sobre o povo católico, este querendo ou não.
- Uma Igreja envelhecida. O atual cenário de impedimento da participação dos idosos nas celebrações dominicais, evidencia como é tímida e reduzida a presença de jovens e de casais novos em nossas comunidades, até mesmo nos ministérios e serviços;
- Quebra do vínculo comunitário. Teremos de lidar com certo “esfriamento” do preceito dominical, além de possível maior ruptura no vínculo comunitário eclesial;
- Cuidar do que temos. Cuidar das lideranças pastorais diocesanas e paroquiais que temos, buscando restaurar a comunhão que talvez não tenha sido alimentada neste tempo de pandemia é um urgente desafio. Também os mais próximos passam por dificuldades psicológicas, financeiras e espirituais nestes meses;
- As famílias feridas. Cuidar das famílias, especialmente daquelas que na travessia da pandemia foram profundamente chagadas. São muitos casais em crise, aumento dos divórcios e até violência doméstica. A Igreja aqui é desafiada a ser hospital de guerra, interessada em tratar feridas profundas, como pede o Papa Francisco;
- Liturgia e Vida. Cuidar da Liturgia e da vida, de forma que o zelo por uma não venha a ferir a outra. O grande desafio é retornar com as celebrações com presença do povo sem que a Liturgia deixe de expressar o mistério do encontro com Deus e sem que o povo ponha em risco a saúde sua e dos outros;
- A formação pastoral. Pensar os planos pastorais de formação de dioceses e paróquias a partir desta realidade que vivemos e dos diversos desafios identificados;
- Voltar ao essencial. Discernir o que realmente é essencial em nossa ação pastoral no mundo atual, com a coragem de se purificar dos adornos desnecessários.
II. SINAIS DOS TEMPOS
“Olhando para o futuro, vamos ler os sinais que a COVID-19 exibiu claramente” (Cardeal Michael Czerny – Prefácio do livro Vida Após a Pandemia do Papa Francisco).
Na dimensão Ético-Humana
- O reconhecimento da profunda necessidade que temos dos outros como remédio para a indiferença. “Verdadeiramente palavras como indiferença, egoísmo, divisão, esquecimento não são as que queremos ouvir neste tempo. Mais, queremos bani-las de todos os tempos!” (Papa Francisco - bênção Urbi et Orbi da Páscoa 2020);
- A presença do Reino de Deus escondido na humanidade resistente que insiste em servir, amar, dar a vida e o tempo pelos outros mesmo nestas circunstâncias de morte. Profissionais de saúde, jovens vizinhos solidários, empresários conscientes, manifestantes pacifistas pelo fim do preconceito racial e tantos outros são manifestação da face divina do autêntico Humano, sinal credível de que o Reino começa aqui;
- A oportunidade de reorientar o próprio viver, o próprio agir e o próprio se relacionar que este momento de confronto com a finitude nos propõe.
Na dimensão Socioambiental
- A confirmação da verdade da Laudato Si’ com todas as suas provocações e o reconhecimento da necessidade de uma conversão integral, para que a humanidade – a começar pelas comunidades cristãs – encontre outro modo de vida;
- A sociedade brasileira, diante da crise política, necessita de cidadãos e agentes públicos cientes do primado da pessoa humana e do bem comum, aspectos centrais da Doutrina Social da Igreja;
- A partir das limitações impostas pela ampla recessão econômica, surge a oportunidade de olhar para uma economia mais local e regional, investindo em alternativas para além do mercado, visando o bem viver e bem conviver. Sobre isso, muito tem a dizer a ArticulaçãoBrasileira pela Economia de Francisco (ABEF).
Na dimensão Religiosa-Pastoral
- A consciência de que estamos sempre nas mãos de Deus e de que nossos planejamentos e calendários não são totalizantes dos seus desígnios, que exigem abertura às suas surpresas e às surpresas da vida;
- A oportunidade de mostrar – pelo testemunho e pela voz profética – à sociedade, principalmente às novas gerações, o novo lugar que a religião possui no mundo de hoje;
- A pessoa do Papa Francisco, com sua clareza evangélica e liberdade de espírito, que muito ensina e motiva as lideranças eclesiais à santa parrésia e ousadia para agir na atualidade e construir um novo futuro;
- A saudade de muitos da comunidade eclesial e das celebrações, revelando uma necessidade que nem mesmo sabiam que era real;
- A oportunidade de rearticular a rede de comunicação nas dioceses e paróquias, e de entrar para permanecer nos diversos ambientes de comunicação digitais, somando-os à ação pastoral ordinária;
- A redescoberta da eclesialidade do lar – jeito antigo e novo de ser Igreja – e da centralidade da família para toda e qualquer ação pastoral;
- A apresentação da caridade e da solidariedade como constitutivas da ação pastoral fundamental;
- A oportunidade de repensar o que é de fato essencial no meio pastoral e de ousar na abertura de novos caminhos.
III. PROPOSTAS
“Depois do que já passamos este ano, não devemos ter medo de nos aventurarmos por novos caminhos e de propor soluções inovadoras” (Cardeal Michael Czerny – Prefácio do livro Vida Após a Pandemia do Papa Francisco).
Na dimensão Ético-Humana
- Capacitar, através de diretrizes bem elaboradas, pessoas de vida e fé maduras para realizar plantões de escuta nas comunidades e paróquias;
- Solicitar aos padres que deleguem funções, para que lhes sobre mais tempo para atender as pessoas que chegam e visitar as que não chegam;
- Inserir transversalmente nos diversos níveis da formação a práxis da cultura do encontro e do cuidado, como combate à cultura da indiferença, pois “entre vós não deve ser assim” (cf. Mt 20,26).
Na dimensão Socioambiental
- Promover a Pastoral Ambiental – com a concreta proposta de uma conversão integral – e, através dela, articular redes de produção, cooperação e comércio locais e regionais como alternativa econômica diante da crise;
- Zelar pela evangélica conscientização político-cidadã dos cristãos leigos e das pequenas comunidades eclesiais missionárias, através de mensagens, homilias, Escolas de Fé, Política e Cidadania e cursos populares de Doutrina Social da Igreja, que podem iniciar seus trabalhos de forma semipresencial;
Na dimensão Religiosa-Pastoral
- A consciência do lugar que a religião possui hoje deve se originar na forma integral e positiva com que ela vê, fala e se relaciona com a pessoa humana concreta;
- Conhecer e dar a conhecer melhor o pensamento do Papa Francisco sobre as realidades do mundo atual: Laudato Sí, Encontro sobre a Economia de Francisco, Pacto Global pela Educação, etc.
- Elaborar planejamentos pastorais de forma conjunta e sinodal, superando as fragmentações que ferem as relações eclesiais;
- Elaborar um programa de retorno gradativo das atividades pastorais – à distância, semipresencial e presencial - que acompanhe a regressão da pandemia e as orientações das autoridades de saúde;
- Aproveitar da saudade que muitos tiveram das celebrações e da comunidade para acolher bem, mostrar que são importantes e atrair suas famílias;
- Priorizar o trabalho com as famílias – sobretudo as feridas – e oferecer meios para o cultivo de uma espiritualidade doméstica e da graça da convivência;
- Assumir os ambientes digitais como constitutivos da ação pastoral ordinária, zelando pelo vínculo com a comunidade;
- Valorizar a formação à distância como meio eficaz e sério de trabalho e de comunhão;
- Assumir com coragem, daqui pra frente, uma opção preferencial pelos jovens e casais novos, zelando pela sadia renovação dos serviços pastorais.
IV. CONCLUSÃO
Olhando para o ideal evangélico, para o que nos pede o Sínodo Amazônico e para a realidade que enfrentamos,
Precisamos
desaprender
- A fragmentar a fé, privando-a de sua integralidade necessária;
- A caminhar sozinhos, cada um na sua comunidade, pastoral, movimento ou paróquia sem a vivência da unidade;
- Que apenas a igreja é lugar de fazer pastoral;
- A propagandear a fé em nossas mídias digitais.
Precisamos
aprender
- Que a Laudato Si’ é urgência pastoral, humana, social e ecológica;
- Que ser comunidade é mais do que fazer as coisas juntos, mas ser com os outros e para os outros;
- A partilhar as tristezas e as angústias que a pandemia deixa nos corações dos homens e mulheres de hoje;
- A parar, repensar, avaliar e discernir sobre o essencial em nossa ação evangelizadora;
- A fazer como o Papa: primeirear, dar testemunho e ser ousados.
Precisamos
reaprender
- O caminho do Evangelho da proximidade e da compaixão;
- A vivência da fé em família, a arte da convivência e a espiritualidade do cotidiano;
- A arte da escuta que cura;
- Que não podemos evangelizar desconsiderando o contexto social;
- A sair em missão para anunciar, encontrar e cuidar;
- A missão singular da religião no mundo.
Que nos mova a alegria do Evangelho e a viva esperança do santo padre, o Papa Francisco:
“Espero que esse momento de perigo nos tire do piloto
automático, sacuda nossas consciências adormecidas e permita uma
conversão humanística e ecológica que termine com a idolatria do dinheiro e
coloque a dignidade e a vida no centro. Nossa civilização, tão competitiva
e individualista, com suas taxas frenéticas de produção e consumo,
seus luxos excessivos e lucros desmedidos para poucos, precisa mudar,
se repensar, se regenerar.” (Mensagem de Páscoa aos Movimentos Populares –
2020)
Notas:
[1] PAPA FRANCISCO. Vida após a
Pandemia. Libreria Editrice Vaticana.
O tempo de hoje, não basta se comover, mas é necessário se converter e se mover com compaixão para sair de si e ir ao encontro do outro. "Amar a Deus de todo coração e o próximo como a si mesmo". # eu me comptometo! Eu confio na graça do Senhor.
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