Papa Francisco aos Movimentos Populares em tempos de Pandemia
Papa Francisco com os Movimentos Populares em 2013 - Fonte: BrasildeFato |
Nestes tempos de tempestade em que vivemos, o Papa olha para o hoje e para o amanhã como pastor. Em sua visão, são os muitos e muitas servidores/as silenciosos que dão base à superação da crise. Também depois, ao término desta pandemia, surgirão desafios que não podem ser encarados apenas a partir das lógicas já carimbadas pelos poderes estruturados. É preciso ousar e recolocar a pessoa e os povos no centro das decisões e paradigmas. É um pouco sobre isso que ele escreve na belíssima mensagem aos Movimentos e Organizações Populares neste Domingo de Páscoa. Confira na íntegra (grifos nossos).
Aos
irmãos e irmãs dos movimentos e organizações populares.
Queridos amigos,
Lembro-me com frequência de nossos
encontros: dois no Vaticano e
um em Santa Cruz de la Sierra e confesso que essa
"memória" me faz bem, me aproxima de vocês, me faz repensar em tantos
diálogos durante esses encontros e em tantas esperanças que ali nasceram e
cresceram e muitas delas se tornaram realidade. Agora, no meio dessa pandemia, eu me
lembro de vocês de uma maneira especial e quero estar perto de vocês.
Nestes
dias de tanta angústia e dificuldade, muitos se referiram à pandemia que sofremos com metáforas bélicas. Se a luta
contra a COVID-19 é uma guerra, vocês são um verdadeiro exército invisível que luta nas trincheiras
mais perigosas. Um exército sem outra
arma senão a solidariedade, a esperança e o sentido da comunidade que
reverdecem nos dias de hoje em que ninguém se salva sozinho. Vocês são para
mim, como lhes disse em nossas reuniões, verdadeiros
poetas sociais, que desde as periferias esquecidas criam soluções dignas
para os problemas mais prementes dos excluídos.
Eu sei que muitas vezes vocês não são
reconhecidos adequadamente porque, para este sistema, são verdadeiramente
invisíveis. As soluções do mercado não chegam às periferias e a presença protetora do Estado é escassa.
Nem vocês têm os recursos para realizar as funções próprias do Estado.
Vocês
são vistos com suspeita por superarem a mera filantropia por meio da
organização comunitária ou por reivindicarem seus direitos, em vez de ficarem
resignados à espera de ver se alguma migalha cai daqueles que detêm o poder econômico.
Muitas
vezes mastigam raiva e impotência quando veem as desigualdades que persistem mesmo quando terminam
todas as desculpas para sustentar privilégios. No
entanto, vocês não se encerram na denúncia: arregaçam as mangas e continuam a
trabalhar para suas famílias, seus bairros, para o bem comum. Essa atitude de vocês me ajuda, questiona e
ensina muito.
Penso nas pessoas, especialmente mulheres, que multiplicam o pão nos refeitórios
comunitários, cozinhando com duas cebolas e um pacote de arroz um delicioso
guisado para centenas de crianças, penso nos doentes, penso nos idosos.
Elas nunca aparecem na mídia convencional.
Tampouco
os camponeses e os agricultores familiares,
que continuam a trabalhar para produzir alimentos saudáveis, sem destruir a
natureza, sem monopolizá-los ou especular com a necessidade do povo. Quero que saibam que nosso Pai Celestial
olha para vocês, vos valoriza, reconhece e fortalece em sua escolha.
Quão
difícil é ficar em casa para quem mora em uma pequena casa precária ou para
quem de fato não tem teto. Quão difícil é para os migrantes, as pessoas privadas de liberdade ou para aqueles
que realizam um processo de cura para dependências. Vocês estão lá, colocando seu corpo ao lado deles, para
tornar as coisas menos difíceis, menos dolorosas.
Congratulo a vocês e agradeço do fundo do
meu coração. Espero que os governos entendam que os paradigmas tecnocráticos (sejam centrados no estado, sejam centrados
no mercado) não são suficientes para enfrentar esta crise e nem os outros
problemas importantes da humanidade. Agora, mais do que nunca, são as pessoas, as comunidades, os povos
que devem estar no centro, unidos para curar, cuidar, compartilhar.
Eu
sei que vocês foram excluídos dos benefícios da globalização. Não desfrutam daqueles prazeres superficiais que
anestesiam tantas consciências. Apesar disso, vocês sempre sofrem os danos
dessa globalização. Os males que afligem a
todos, a vocês atingem duplamente. Muitos de vocês vivem o dia a dia sem nenhum
tipo de garantias legais que os protejam. Os vendedores ambulantes, os
recicladores, os feirantes, os pequenos agricultores, os pedreiros, as costureiras,
os que realizam diferentes tarefas de cuidado.
Vocês, trabalhadores informais, independentes ou da economia popular,
não têm um salário estável para resistir a esse momento... e as quarentenas são insuportáveis para vocês. Talvez seja a hora de pensar em um salário universal que
reconheça e dignifique as tarefas nobres e insubstituíveis que vocês realizam;
capaz de garantir e tornar realidade esse slogan tão humano e cristão: nenhum
trabalhador sem direitos.
Também
gostaria de convidá-los a pensar no
"depois", porque esta tempestade vai acabar e suas sérias
consequências já estão sendo sentidas. Vocês não são uns improvisados, têm a
cultura, a metodologia, mas principalmente a sabedoria que é amassada com o
fermento de sentir a dor do outro como sua. Quero que pensemos no projeto de desenvolvimento humano integral
que ansiamos, focado no protagonismo dos Povos em
toda a sua diversidade e no acesso universal aos três T que vocês defendem: terra e comida, teto e trabalho.
Espero
que esse momento de perigo nos tire do
piloto automático, sacuda nossas consciências adormecidas e permita uma
conversão humanística e ecológica que termine com a idolatria do dinheiro e
coloque a dignidade e a vida no centro. Nossa civilização, tão competitiva e individualista, com suas taxas frenéticas
de produção e consumo, seus luxos excessivos e lucros
desmedidos para poucos, precisa mudar, se repensar, se
regenerar.
Vocês são construtores indispensáveis dessa mudança urgente; além disso,
vocês possuem uma voz autorizada para
testemunhar que isso é possível. Vocês conhecem crises e privações... que
com modéstia, dignidade, comprometimento, esforço e solidariedade, conseguem transformar em uma promessa de vida
para suas famílias e comunidades.
Mantenham vossa luta e
cuidem-se como irmãos.
Oro por vocês, oro com vocês e quero pedir ao nosso Deus Pai que os abençoe,
encha vocês com o seu amor e os defenda ao longo do caminho, dando-lhes a força
que nos mantém vivos e não desaponta: a esperança.
Por favor, orem por mim que eu também preciso.
Fraternalmente,
Cidade do
Vaticano, 12 de abril de 2020, Domingo de Páscoa.
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